Estou de volta. Vamos lá. Discordar de quem habitualmente costumo discordar é exercício um tanto enjoativo. Penso, por exemplo, em Renato Janine Ribeiro, e começa a me dar aquela preguiça… Melhor discordar de alguém com quem, habitualmente, concordo. É o caso de João Pereira Coutinho, que escreve hoje na Folha Online sobre Amy Winehouse — de quem nunca falei no blog porque, de fato, ela não me dizia e não me diz nada. Prefiro Adele, que leva jeito de exagerar nas batatas. A grande arte extrai o incomum da vida comum. O artista marginal é uma invenção cretina do século 19.
Coutinho pôs seu talento para NÃO DISCUTIR um tema, desqualificando os que decidiram fazê-lo. Assim, escreveu o que parece ser um não-texto sobre um não-assunto. Vamos ver. Diz ele:
“Morreu Amy Winehouse e os moralistas de serviço já começaram a aparecer. Como abutres que são.”Parece que abutres são todos os moralistas, não apenas os que buscam “moralizar” a morte da cantora. Sem usar umas duas ou três linhas a mais para especificar de que moralismo está falando, parece descartar por inútil boa parte da filosofia, que se ocupa justamente da moral. “Ele fala de ‘moralismo’, não distorça”. É? Não tenho eu de preencher o conteúdo que ele decidiu deixar em branco. O texto nos autoriza a jogar no lixo tanto o motorista de táxi inconformado com o “tóchico” como Santo Agostinho.
Coutinho não gosta do que anda lendo a respeito de Amy:
“Não há artigo, reportagem ou mero obituário que não fale de Winehouse com condescendência e piedade. Alguns, com tom professoral, falam dos riscos do álcool e da droga e dão o salto lógico, ou ilógico, para certas políticas públicas.”Eu considero uma proteção civilizadora falar de quem morre com “condescendência e piedade”. Abutres destroem a carcaça e garantem a sua própria vida alimentando-se da coisa morta. A cultura da droga, esta sim, alimentou-se de Amy, referendando a mitologia estúpida de que aquilo que a destruía era a sua fonte de criação e de fruição. A cantora fez do mundo um palco e se esfarelou em praça pública.
Coutinho é dos melhores articulistas da imprensa brasileira, um dos mais cultivados, e sabe que toda vida é expressão de um conjunto de valores morais, queira o vivente ou não. Com mais propriedade o são as personalidades públicas, cujo trabalho depende dessa publicidade. Sua vida tem, queira ou não, um sentido exemplar. Voltemos à mimese aristotélica: é preciso representar dramas críveis para que se possa extrair um sentido — com o perdão da palavra — MORAL do que está sendo encenado. Assim, que se busque, a partir de Amy, extrair uma espécie de moral da história, de sentença, é mais do explicável; é, na verdade, necessário; está dentro das regras do jogo.
Pergunto-me até onde — na verdade, afirmo-o — Coutinho não se quedou vítima do mal que denuncia. Segundo entendi, ele ficou irritado com o tom catequista e catequizador dos que decidiram falar sobre a morte de Amy, ignorando o fato em si para se fixar no que seria uma pauta, uma agenda. Não faz o autor a mesma coisa? Também ele não está forçando a mão para defender uma tese? Também ele não usa Amy para expressar um ponto de vista sobre o vício e sobre a legalização das drogas?
Deslegitimar um ponto de vista contrário, sem debatê-lo, como expressão de uma visão meramente reacionária ou atrasada de mundo, meu caro Coutinho, é prática corriqueira dos esquerdistas que vivem a atacá-lo e a me atacar com boçalidades — como se, de resto, pensássemos a mesma coisa; é que acham que pensamentos a mesma coisa só porque divergimos deles…
Segue Coutinho:
Amy Winehouse é, consoante o gosto, um argumento a favor da criminalização das drogas; ou, então, um argumento a favor de uma legalização controlada, com o drogado a ser visto como doente e encaminhado para a clínica respetiva. O sermão é hipócrita e, além disso, abusivo.Por quê? O autor reclamou do salto “lógico, ou ilógico” dos que usam Amy como exemplo para debater certas políticas públicas. Muito bem! O que vai nessas linhas acima? Não está dado aí o salto “lógico, ou ilógico”. Aqui é preciso um pouco de cuidado. Eu, por exemplo, acho que, dado o desfecho trágico, é “lógico” que se defenda a criminalização das drogas — meu argumento principal, no entanto, como sabem todos, nunca esteve relacionado ao destino de pessoas tomadas individualmente; isso é incontrolável —, mas não vejo lógica na eventual defesa da legalização controlada. Adiante.
Sim, concordo em parte com Coutinho:
Começa por ser hipócrita porque este tom de lamentação e responsabilidade não existia quando Amy Winehouse estava viva e, digamos, ativa. Pelo contrário: quanto mais decadente, melhor; quanto mais drogada, melhor; quanto mais alcoolizada, melhor. Não havia jornal ou televisão que, confrontado com as imagens conhecidas de Winehouse em versão zoombie, não derramasse admiração pela ‘rebeldia’ de Amy, disposta a viver até o limite.Sempre lastimei cá comigo — nunca escrevi a respeito porque, francamente, essa moça nunca tomou mais de cinco minutos do meu tempo — essa glorificação do pé-na-jaca. Sentia pena de Amy não porque me visse compelido a salvá-la ou porque me julgasse dotado de uma visão superior que ela ainda não havia alcançado, mas porque, se somos todos cadáveres adiados, ela era um dos casos de cadáver apressado. Mas que, atenção — e é esta dimensão que Coutinho ignora em seu texto — PRODUZIA VALORES. Era e é escandalosamente visível que seus fãs admiravam e admiram menos as eventuais qualidades estéticas de seu trabalho do que sua “entrega”. O que fazia de Baudelaire um Baudelaire? Eu ainda acho que era a sua habilidade em fazer versos.
Amy não era, como se lê agora, uma pobre alma afogada em drogas e bebida. Era alguém que criava as suas próprias regras, mostrando o dedo, ou coisa pior, para as decadentes instituições burguesas que a tentavam “civilizar”.Não fica claro se Coutinho é irônico ao se referir às “decadentes instituições burguesas”. É possível que sim. Eu estou entre aqueles que acreditam que Amy fez as suas escolhas. E ponto! Mas o autor me parece errado ao afirmar que a cantora criava as suas próprias regras. Amy era um estúpido, aborrecido e, como todos, previsível clichê. São menos perversos — e ilógicos — ou “moralistas” os que usam sua morte como um alerta do que os cretinos que a consideram uma espécie de coroamento da obra.
A exemplo de Amy, Coutinho faz as suas escolhas, e eu também. Todo artista é, reitero, em certa medida, exemplar, a menos que produza apenas para si mesmo, e artista não é porque falta o “outro” que lhe confere sentido. Dado isso, a censura ao comportamento de Amy é muito mais civilizadora do que a apologia. Esta, sim, marca um compromisso com a morte. Nenhum estado é autoritário o bastante a ponto de proibir o suicídio, mas eu estou entre aqueles que têm um compromisso moral com a vida, sem a qual todo o resto é inútil.
E quando o pai da cantora veio a público implorar para que parassem de comprar os seus discos –raciocínio do homem: era o excesso de dinheiro que alimentava o excesso de vícios– toda a gente riu e o circo seguiu em frente. Os moralistas de hoje são os mesmos que riram do moralista de ontem.Bem, acho que não. O raciocínio do pai de Amy não era moralista, mas apenas desesperado. A palavra é descabida. Há uma boa possibilidade de haver os “moralistas” de hoje que não riram ontem.
Mas o tom é abusivo porque questiono, sinceramente, se deve a sociedade impor limites à autodestruição de um ser humano. A pergunta é velha e John Stuart Mill, um dos grandes filósofos liberais do século 19, respondeu a ela de forma inultrapassável: se não há dano para terceiros, o indivíduo deve ser soberano nas suas ações e na consequência das suas ações.Eis aí. Coutinho decidiu usar o caso de Amy para, digamos assim, testar a fortaleza de seu liberalismo. Os chamados “liberais-liberais” (à diferença deste “liberal-conservador”) fizeram certa aliança tática com as novas esquerdas na defesa da descriminação das drogas — e esse é o tema subjacente; Amy é só o cadáver do dia — porque, afinal, todos têm o direito ao suicídio. A última aparição pública de Amy, visivelmente transtornada, foi no show de uma garota de 15 anos — na fila dos cadáveres apressados, segundo entendi —, fazendo praça de seu estilo de vida. Dano a terceiros? Acho que sim, Coutinho!
A reprimenda aos que fazem a apologia da morte e da autodestruição — especialmente quando, em razão de sua atividade, podem influenciar o comportamento de outras pessoas, de jovens em particular — é a outra face da liberdade de expressão, Coutinho.
Bem dito. Mas não é preciso perder tempo com filosofias. Melhor ler as letras das canções de Amy Winehouse, onde está todo um programa: uma autodestruição consciente, que não tolera paternalismos de qualquer espécie. O tema “Rehab”, aliás, pode ser musicalmente nulo (opinião pessoal) mas é de uma honestidade libertária que chega a ser tocante: reabilitação para o vício? Não, não e não, diz ela. Três vezes não.Nada haveria a acrescentar ao texto não fosse Amy parte da indústria de entretenimento e não vendesse valores. “Honestidade libertária”? Honestidade, talvez: “Sou drogada mesmo, e daí?” Mas “libertária”? A liberdade que nasce de um vício é uma revolução conceitual que requer desdobramentos.
Respeito a atitude. E, relembrando um velho livro de Theodore Dalrymple sobre a natureza da adição (”Junk Medicine: Doctors, Lies and the Addiction Bureaucracy”), começa a ser hora de olhar para o consumidor de drogas como um agente autônomo, que optou autonomamente pelo seu vício particular –e, em muitos casos, pela sua destruição particular.Não conheço o livro. Mas, se a síntese é essa, a sociedade tem o dever, além do direito, de combater os viciados, especialmente aqueles que podem, dada a força do exemplo, convencer outras pessoas de que se produz civilização com autodestruição. O drogado faz a sua escolha, e a sociedade também; ele enfia o pé na jaca, e a ordem legal se encarrega, então, de isolá-lo. Ocorre que as coisas estão caminhando em outro trilho. Já chego lá.
As drogas não se “apanham”, como se apanha uma gripe; não se “pegam”, como se pega um doença venérea; e não são o resultado de uma mutação maligna das células, como uma doença oncológica. As drogas não “acontecem”; escolhem-se. O drogado pode ficar doente; mas ele não é um doente - é um agente moral.Ah, bem. E os que censuram os drogados também são agentes morais, e, portanto, a moral está de volta à conversa. Eu concordo com Coutinho nesse particular. Por isso mesmo, acho essencialmente imoral que a sociedade tenha de arcar com os custos da chamada “reabilitação dos drogados”, como se tornou moda defender hoje em dia. Notem que, respondendo ao autor, estou aqui a debater política pública de combate às drogas, seguindo o salto “lógico, ou ilógico”, do articulista.
Acho a descriminação do consumo de drogas uma tese estúpida também porque ela vem sempre associada às políticas públicas de reabilitação, que custam uma fortuna. Por que os cidadãos não-drogados, os aborrecidos “produtivistas”, que enchem os cofres do estado com parte do seu trabalho, têm de financiar as conseqüências da escolha moral dos viciados? Que escolham! Mas que se reserve à sociedade da ordem a prerrogativa de afastá-los do convício social. Coutinho tem razão: o viciado não é uma vítima; é alguém que escolheu um caminho.
Mais: como explica Dalrymple, que durante décadas foi psiquiatra do sistema prisional britânico, o uso de drogas implica um voluntarismo e uma disciplina que são a própria definição de autonomia pessoal. E, muitas vezes, o uso de drogas é o pretexto para que vidas sem rumo possam encontrar um. Por mais autodestrutivo que ele seja. Moralizar o cadáver de Amy Winehouse? Não contem comigo, abutres.É, nesse ponto, Coutinho volta à sua agenda, dando um salto perigoso: vidas sem rumo encontrariam nas drogas uma direção… A possibilidade aberta não difere em nada da velha mística que cerca as drogas, que abririam caminhos novos da percepção etc e tal. Eu estou entre aqueles que acreditam que Amy viveu e morreu como quis, sim. Mas isso não me basta porque tal constatação vale para algumas centenas de viciados anônimos que morreram hoje mundo afora. Como personalidade pública, ela representava um conjunto de valores, um estilo de vida, uma escolha moral e uma escolha ética. Nesse particular, ela é a expressão clara e insofismável de um desastre. Não só isso. Amy também significa a renovação de um mito estúpido, segundo o qual o talento — e há quem diga que ela era o “ó” do borogodó; não pra mim — nasce de uma espécie de maldição. E não custa notar: Coutinho moralizou o cadáver de Amy Winehouse. A diferença é que ele acha a sua moralização, digamos, moralmente superior à daqueles de quem discorda.
PS: Torço para que Adele continue a exagerar só nas batatas…